sábado, 25 de dezembro de 2021

Sapatos furados - Conto de natal de Hadil Almeida e Luis Ubuntu




Sapatos furados

 

Massala olhava admirado no enorme casarão em sua frente. Apreciava os detalhes de tudo que via. Era a sua primeira vez numa zona da cidade da alta sociedade. Ele perguntava a si mesmo, por que todas as casas naquela zona tinham seguranças; Será que os ricos desconfiavam tanto assim um dos outros? Sem respostas para si mesmo, ele apenas acompanhava o segurança de enorme porte físico que o escoltava até onde fora indicado que o deixasse. Massala tentava dissimular sua admiração pela beleza de tudo o que via pela primeira vez, mas seus olhos inocentes expunham verdades sinceras sobre o que se passava em sua mente.

 

- Sente-se aqui! Alguém virá atendê-lo. - esclareceu o segurança indicando o sofá branco de três lugares numa das salas de estar.

- - Obrigado! - agradeceu e esperou o segurança se retirar. Reparou bem no sofá branco como a neve e temeu que as suas vestes apesar de estarem limpas e preparadas pela sua mãe sujassem o sofá. Receoso, sentou e levantou rapidamente, reparou que o sofá não havia sujado e só assim voltou a sentar mais tranquilo.

 

De onde ele estava sentado dava para ver um pouquinho da decoração na outra sala. O ambiente natalício lá, e os sons clássicos de natal que de lá ecoavam. Uma casa com tanta luz que lhe lembrou quanto tempo não via as lâmpadas da sua casa acesas por conta da falta de dinheiro para sua mãe pagar a energia.

 

- Bom dia, Sr.! - saudou uma menininha de cinco anos vestida de um pijama vermelho e branco com estampas natalinas.

- - Bom dia! - os dois ficaram olhando um para o outro num silêncio constrangedor.

- Bom dia, Massala! - cumprimentou a professora entrando na sala esbanjando um sorriso de orelha a orelha.  

- - Bom dia, senhora professora! - ele levantou entusiasmado e ao mesmo tempo tímido ao ver a sua professora.

- Minha filha está incomodando? - perguntou sorridente.

- - Não, professora Muhatu! Nós só estávamos...

- Num silêncio constrangedor. - terminou a menina de cinco anos com a pronúncia das palavras ainda bem pesadas.

- - Professora! Como ela sabe essa palavra? - Massala replicou admirado.

- Nem me diga, Massala. Vais ficar surpreendido com quantas palavras difíceis ela conhece. - falou sorrindo. - Me acompanhe.

A professora Muhatu levou a sua filha ao colo e se dirigiram para a sala com a decoração natalícia. Os outros dois filhos da professora já estavam lá sentados à mesa, assim como o seu marido, avós e alguns sobrinhos. A professora sem olhar para trás disse para o Massala:

- Sente-se aqui! - não tendo ouvido uma resposta dele, só assim olhou para trás e percebeu que o Massala ficará pregado na porta da sala olhando para todos e todos olhando para ele.

- - O que foi, Massala? Está tudo bem? - preocupada ele fez sua filha sentar e correu para perto do Massala.




 

Ele não disse nenhuma palavra. Apenas olhava maravilhado para todos e como tudo naquela sala era lindo. A extensão da mesa e os alimentos sobre ela; os pratos bem organizados e copos que o pareceram ser mais que o normal;  as luzes na sala; os acabamentos metálicos dourados da sala que ele presumiu que fossem ouro; a enorme e linda árvore de Natal mais alta que o tecto da sua casa; e as caixas de presentes juntas dela. Era muito para absorver de uma só vez, ainda mais para um menino periférico como ele, que o máximo de luxo que viu mais próximo de si foi em filmes nas casas dos amigos, porque nem sequer tinha TV em sua casa. Teve um tempo que as coisas estavam tão apertadas em sua casa que tiveram de vender a TV.

 

- De..desculpa, professora Muhatu!

- - Está tudo bem, vem sentar. - segurou-lhe pelas mãos e dirigiu-o ao seu assento. Em seguida apresentou Massala para toda sua família.

- Vocês lembram do meu estudante que passo a vida a dizer ser o mais inteligente do mundo? Pois é, o grande Massala veio prestigiar-nos com a sua presença nesse dia especial.

Para surpresa do Massala, todos levantaram para aplaudi-lo. O menino de doze anos nem sabia como reagir.

 

Após as breves apresentações e piadas entre os filhos da professora, finalmente decidiram comer.

 

- Por que não comes? - perguntou um dos filhos da professora olhando para o Massala que estava imóvel.

Ele recusava-se a tocar no que quer que fosse. A professora estava confusa sem conseguir entender a atitude do menino, perguntou:

 

- Massala, o que se passa?

- - Nada, Sra. Professora.

- Onde está a Lúcia? Lú!? - perguntou a professora preocupada ao notar que a sua filha caçula não estava no seu lugar especial à mesa.

- - Estou aqui, mamã!

Todos eles olharam para debaixo da mesa, que era de onde vinha a voz dela. Ela sorriu ao ver a  sua mãe espreitando debaixo da mesa.

- Filha! O que estás a fazer aí? Saía já! - ordenou.

Ela saiu debaixo da mesa e respondeu:

- Estava a brincar, mamã.

- - Eu já disse que só podes brincar após acabares de comer e fazeres digestão.

- Desculpa, Мамочка! - ela retrucou. Massala olhou para a menina admirado, percebeu de imediato que a menina havia falado russo.

- - Fui eu que lhe ensinei essa palavra! - gritou um dos filhos da professora..

 

- Aluno da mamã com nome complicado! - disse a menina Lúcia de volta ao seu assento. - Por que os teus sapatos estão furados? Os dois!

 

O Massala não soube o que responder. Todos à mesa sentiram-se ofendidos pela pergunta da menina. Não era possivel dizer que parecia mais envergonhado, Massala pela pergunta que lhe foi feita ou a professora Muhatu e os seus familiares. Massala não soube o que responder. Um dos rapazes espreitou debaixo da mesa para se certificar do que a Lúcia disse. Era verdade. Seus sapatos estavam furados como peneira.

 

- Lúcia, peça já desculpa ao Massala por essa pergunta tola.

E em meio daquele silêncio constrangedor. Lúcia perguntou novamente:

- - Por que, Мамочка? Se ele quiser eu posso lhe ofertar os meus sapatos novos.

 

Todos ficaram admirados com a inocência demonstrada pela menina. Nem a Professora Muhatu soube o que dizer.

 

Acanhado em sua própria inteligência, Massala estava perdido diante da pergunta da menina de cinco aninhos.

- Deixa o Massala em paz, Lúcia! - repreendeu a mãe novamente.

- - É o meu único par de calçados! - respondeu Massala completamente entristecido por se sentir forçado a dizer aquelas palavras que eram como deixar sua sua alma nua em meio a estranhos. - É o único par de sapato que minha mãe pode comprar para mim.

 

"Deus passou." É assim que se denominava na terra da Rainha Nginga um silêncio repentino ou constrangedor como aquele que pairou na sala por alguns instantes.

 

- As minhas meias também estão furadas. - disse um dos filhos da professora tentando quebrar o gelo da situação.

- - Também tenho roupas furadas. - acrescentou o outro filho.

- E por que só tens um calçado? - perguntou novamente a doce e inocente Lúcia sem entender o constrangimento que tivera causado.

- - Lúcia! - repreendeu a professora visivelmente chateada. - Vamos para a outra sala. Ela levantou. - Por favor, pode retirar os pratos da mesa. - pediu a uma das empregadas domésticas que estava na sala.

- Vão deitar tudo isso? - perguntou Massala indignado. Após ver tanta comida desperdiçada e resto de comida que deixaram nos pratos.

- - É o que restou! - respondeu um filho da professora.

- Posso levar o que restou para casa para comer com os meus irmãos? - olhou com piedade para a professora.

 

Mais uma vez o silêncio tomou conta da sala, dessa vez pela pergunta do Massala.

 

- Eu não quero comer porquê enquanto estou aqui possivelmente os meus irmãos não têm nada para comer nesse natal. Por isso, por favor, Sra. Professora, deixa levar a comida que restou para a minha casa. - Pediu Massala quase implorando. - Eu tenho quatro irmãos, dentre eles eu sou o único que estuda, porque minha Mãe não consegue pagar o estudo de todos de uma vez, por isso eu me esforço todos os dias para ser um bom estudante. Meu pai sempre dizia que é pela educação que podemos mudar o mundo, mas infelizmente ele morreu cedo demais para ver o quanto eu quero mudar o mundo.

Era visível as lágrimas que escorriam nos olhos de todos presente naquela mesa após o desabafo do menino Massala.

 

-- Se pudesses mudar o mundo o que farias? - Lúcia perguntou inocentemente. - E Por que estás a chorar, Мамочка? -

 

Antes que alguém respondesse Massala tomou a palavra:

 

-- Se eu pudesse mudar o mundo eu acabaria com a fome, nenhuma criança ou adulto no mundo conheceria a fome. Porque a fome é que dói, a fome é que mata. - Massala respondeu com lágrimas nos olhos. - Eu quero voltar para minha casa, Sra. Professora.

 

A professora Muhatu levantou-se e foi até ao Massala, pediu que ele o acompanhasse. A professora sabia que Massala assim como as outras crianças da comunidade passavam dificuldades, mas não fazia ideia da história dele. Assim como o ele, a professora também havia crescido no bairro Malueca, ela sabia o que era sofrimento e sentir fome, apesar de estar casada com um ministro, ela jamais esqueceu da sua gente. Escolheu ser professora por profissão para poder estar perto da sua gente e os ajudar a crescer com os seus conhecimentos. Era uma mulher com um coração enorme. A última remodelação da escola foi paga por ela.

 

Entregaram ao motorista um saco, Massala tinha certeza que era o resto de comida; a professora pediu que o motorista o levasse de volta para casa.

 

O som das palavras do Massala ainda ecoavam nos ouvidos daquela família rica. Era impossível não estarem impactados.

 

                              ******

Uma hora depois…

 

Massala havia chegado em sua casa, recebeu das mãos do motorista o saco com resto de comida. Aliás, com o saco que ele achava ter o resto de comida, porém, teve uma grande surpresa quando abriu, era um novo par de calçados em uma caixa. Chorou de emoção por ter ganho um novo par de calçados.

 

Massala ficou ainda mais surpreendido quando avistou três carros vindo em direção a sua casa. Era a professora Muhatu acompanhada dos seus filhos e seus familiares. Trouxeram um monte de comida e presentes, não só para o menino Massala e para sua família, também para os seus vizinhos. A mãe do menino Massala e os seus irmãos assim como os outros moradores correram para ver o que se passava.

 

Algumas pessoas reconheceram logo a menina Muhatu que cresceu no bairro.

 

-- Boa tarde, minha família. - Saudou a professora com um sorriso. - Hoje o natal é com todos vocês e temos presentes.

 

Todos vibraram. Em pouco tempo os donativos foram distribuídos. E sem frescura, os ricos e os pobres estavam sentados para juntos celebrarem um natal memorável.

 

Por: Hadil Almeida e Luis da Silva Ubuntu



Brevemente lançamento do primeiro livro físico de Luis da Silva Ubuntu e Hadil Almeida

Um comentário:

  1. Um conto que merece mil estrelas⭐⭐⭐⭐⭐🌠⭐⭐

    Tão cheio de amor, alegria, simplicidade/humildade. Muito emocionante! Esse conto ensina-nos muitos valores. Parabéns Luís e Hadil👏👏🙌💙

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