sábado, 11 de fevereiro de 2023

Talvez Deus esteja errado - Um conto de HADIL Almeida


 Conto: Talvez Deus esteja errado 

Sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023


A minha irmã estava completamente frustrada. De repente, ela tinha começado a ficar mais frontal desde o óbito. Falava tudo o que pensava sem medir danos, ainda assim, apenas falava a verdade, não fazia ou falava nada por maldade. 


Havia aquela sensação estranha no ar de que apesar de nós duas termos sofrido, ela precisava de mais apoio que eu, então eu tinha que cuidar dela de qualquer forma mesmo ela sendo a mais velha. 


Ela simplesmente saiu andando pela cidade e pediu a minha companhia. Eu seguia sem saber para onde íamos. Tão logo ela entrou no pátio de uma escola, eu acompanhei-a preocupada. Ela se dirigiu ao auditório e entrou. Lá estavam uns quatro senhores de meia idade e dois jovens.


Desde quando é que ela fuma? - exclamei dentro de mim enquanto via a minha irmã levando um cigarro à boca no meio do auditório.


- Você não pode fumar aqui, menina! 

Eu concordava com o que um dos velhos disse. Mas ela nem sequer ligou e tentava acender o isqueiro que não funcionava. 


- O senhor pode me dar o seu isqueiro? - ela se dirigiu para um dos velhos. 


O senhor não respondeu. Ela indagou em alto e bom som:

- O senhor pode me dar o seu isqueiro, por favor? Não precisa fingir que não tens.


Embora relutante o senhor, ainda assim, retirou o isqueiro do seu bolso e estendeu a mão para ela, que se aproximou e recebeu. 


- É proibido fumar aqui, menina! 

- É a segunda vez que o senhor me chama de menina. Por favor, não volte a repetir, menina é aquela mocinha parada perto da porta. - respondeu apontando para mim. 


"Por que ela está apontando para mim? Por que ela está a fazer isso? Será que eu devo intervir?" Pensei. 


Apenas o senhor que a chamou de menina e o que a emprestou o isqueiro estavam em pé. Havia um silêncio absoluto enquanto ela tragava o seu cigarro transparendo sua inquietação.


- Eu vou chamar o segurança. 

- Não, por favor, não chame o segurança... - ela respondeu num tom meigo... - Chama Deus. - disse as últimas palavras friamente quase gritando, atirando o cigarro ao piso de madeira e apagando com as suas botas pretas.

- Como assim Deus? 


"Eu tenho a mesma pergunta, velhinho! Como assim Deus, mana?" Pensei.


- Vocês estão aqui reunidos em nome de Deus, né? Então onde ele está?

- Menina, desculpa! Senhorita. Deus já está aqui, está inclusive nos lugares em que não podes imaginar.


"Ahmmm! Entendi agora. Esses senhores são religiosos e as siglas por cima das suas bancadas devem representar alguma denominação religiosa." Pensei.


- Por que pareces estar com raiva de Deus? 

- O que eu estou a sentir por ele não tem nem palavras. 

- Isso é bom! Se estás com raiva significa que acreditas na sua existência. 

- Desde criança que fomos educadas a acreditar na sua existência. - ela fez um gesto apontando nós duas  - Mas com as últimas ocorrências, eu começo a questionar o método de Deus de resolver problemas.

- Blasfêmia! - revindicou um dos jovens sentados.

- Silêncio, oh menino! Eu estou a me dirigir para os adultos.


Eu fiquei em choque com aquela resposta dela. Ela tinha acabado de chamar de menino num adulto cheio de barba claramente mais velho que ela, embora mais jovem que os outros, e ele simplesmente sentou. Contive meu sorriso e me mantive atenta.


- Os métodos de Deus para salvar seus filhos é bastante questionável. - ela colocou enfase na palavra filhos. - Ele mata os bons, deixa os maus vivos, fala de justiça, mas todo dia há uma injustiça. Fala sobre ser omniciente*, mas parece não entender nada do que se passa em nossos corações, sempre nos deixando em aflição. E se por um segundo não vivermos sobre as normas impostas por ele, somos ameaçados por um fogo eterno.

- Com todo respeito, há um fraco discernimento do teu lado sobre as leis espirituais. Deus não é esse vilão de filme de Hollywood que você descreveu.

- Então que tipo de vilão ele é? 

- Deus é bom em todo tempo, em todo tempo Deus é bom. 

- Corta esse discurso barato de decorar frases bíblicas pra parecer culto. Ele supostamente criou um mundo, que mal consegue governar.

- Mas não é Deus que governa esse mundo. 

- Piorou. Então por que um ser celestial cria um mundo e diz que é dele, mas não o governa.

- Pela mesma analogia que grandes empresários não dirigem suas próprias empresas e contratam um CEO.

- Ah! Com que então Deus contratou o diabo?

- Tu és meio burrinha ou não sabes o que é uma analogia?

- Acho que ela é meio burrinha mesmo! - retrucou o barbudo que ela tinha mandado ficar em silêncio.


Ela conversava com três dos velhinhos ao mesmo tempo. 


-Vejamos, crio uma empresa, contracto um péssimo CEO que explora os trabalhadores, eu e o CEO ficamos cada vez mais ricos e poderosos. Quando um funcionário reclama, eu ameaço demitir. E para continuar a manter a esperança duma mudança eu digo que haverá bônus de décimo terceiro, e eles vivem esperando este bônus que nunca chega. E ao longo dessa espera, alguns funcionários morrem nos corredores da empresa, enquanto eu e o CEO ficamos cada vez mais ricos. Eu sou meio burrinha, mas essa é a continuação da tua analogia.


"Puxa! A mana não é nada burrinha. Até eu entendi o que é uma analogia." Pensei.


- Primeiramente, essa tua analogia não se alinha com o contexto porque nesse caso os que funcionários trabalham para deixar rico o CEO e o dono. É diferente no mundo espiritual, sim estás certa na parte em que os funcionários deixam poderoso o CEO, diabo. Porém, Deus não precisa ser exaltado para que ele seja Deus. Deus é Deus ainda que você escolha não adorá-lo, isso não diminui o seu poder. Entretanto, nós homens precisamos acreditar em alguma coisa para nos servir de bússola, seja acreditar na existência dele, doutros deuses, ou acreditar que não acreditamos em algum Deus.


"A mana ficou refletindo por alguns segundos. Levou outro cigarro a boca e acendeu."


- Isso só vai te prejudicar. - retrucou o velho que fez a mana refletir.

- Eu apenas comecei a fumar semana passada, quem deve estar bem prejudicado é vosso amigo que me emprestou o isqueiro.

- Sério isso?

- Vamos conversar isso depois, compadre!


"Como a mana sabia que aquele velho fumava?". Pensei.


- Ok. Por favor, senhorita pare de usar essa droga.

- Por quê? O vosso Deus parece que toma as decisões desse mundo drogado.

- Quais decisões? Qual é o verdadeiro motivo para a sua raiva? 


"Tudo." - Pensei.


- Tudo, tudo está mal decidido. - ela gritou. Coincidentemente a mesma resposta que eu. - Fiscais saíram correndo atrás de zungueiras, tal como todo belo dia em Luanda, só que desta vez, duas delas foram mortalmente atropeladas ao atravessarem a estrada correndo. O restante delas se revelou contra os fiscais. A polícia apareceu dando beijinhos, chocolates e puretes as zungueiras. E nessa confusão nossa mãe acabou morta por espancamento. Quanto aos policiais, simplesmente foram suspensos por três meses. Cadê a justiça divina? Porque claramente a dos homens nem sequer é um debate.


Um silêncio absoluto no auditório até ser interrompido pela tosse de um deles quando a mana exalou o fumo do cigarro. Um dos velhos marcou dois passos em direção a mana e disse.


- Vou ter que ser sincero e talvez isso vai ferir a tua sensibilidade. 

- Diga...

- Foi Deus que mandou a sua mãe e as outras zungueiras se rebelarem? 


Não acreditei no que tínhamos acabado de ouvir. A Mana tirou o cigarro da boca transparecendo o semblante sério. O velho prosseguiu dizendo:


- Foram elas próprias que mesmo sabendo que estavam em desvantagem, porém consumidas pela raiva, se colocaram em posições menos favoráveis. E Deus não pode fazer nada contra as decisões que tomamos, este é o conceito de livre arbítrio.

- Falou o funcionário a espera do bônus de décimo terceiro. E quanto as outras senhoras atropeladas? Foi justo aos olhos de Deus?  Minha irmã e eu nunca tivemos um pai, e agora perdemos a mãe. Tenho que cuidar da minha irmã e completei dezanove anos no dia do funeral! O que Deus está a tentar me ensinar? Que merda de lição eu preciso aprender com essa dor enquanto outros jovens estão aprendendo no seio de uma família bem estruturada?

- Deus escreve certo em linhas tortas.

- Ainda tens os pais vivos? 

- Eu? - ele ficou intrigado.

- Sim, o senhor!

- Sim. - respondeu fechando os olhos.

- Talvez seja por isso que você não compreende a nossa dor. Olha em meus olhos e me diz se a vida tem sido justa . Talvez seja pelo facto de que os senhores estão mentalmente programados a acreditar que tudo é um plano de Deus. É nisso em que vocês fundamentam suas crenças, que Deus tem um plano mesmo que os planos dele saíam errados. É doentio.

- Deus tem um propósito...

- Que popósito coisa alguma! Ele já perdeu o controle disso e nós nem sequer percebemos que estamos por nossa conta. Agora é um salve-se quem puder, suporta a dor que conseguir, morram os fracos, e no meio de tudo, alguns finais felizes para os maus.

Ela lacrimejava enquanto falava e fumava. Apontou para mim dizendo para eles.

- Nossa mãe foi enterrada pelo governo, senão ela estaria apodrecendo em algum vala na cidade. Aquela menina aí, é minha irmã. Ela vai ficar de menstruação em alguns dias e nós nem sequer temos um kwanza para comprar penso higiênico nem o que comer hoje porque além de Deus permitir matarem a minha mãe, ainda levaram o negócio.


Um dos velhos que esteve em silêncio o tempo todo se levantou. Levou a sua cadeira até a mana e ajeitou atrás dela para que ela se sentasse e ofereceu-lhe guardanapos, talvez por vê-la em lágrimas. E disse ajoelhando-se perante a mana: 

- Lição número um; Deus sempre vai te dar conforto, tal como eu exemplifiquei.

Lição dois; alguns homens abdicam desse conforto procurando por algo que aumente seus vícios, sacie seus desejos e os encha de prazer.

Lição três; os homens que escolhem o conforto de Deus têm a sua atenção e atraem certas coisas, de igual modo aqueles que escolhem ficar longe desse conforto também atraem outras coisas em sua vida.

Lição quarto; independentemente de escolheres o conforto ou ficares longe dele, Deus não se coloca nas suas escolhas, isso é livre arbítrio. - o senhor ficou em pé novamente. - Lição cinco; nenhum de nós tem as respostas que procuras sobre tudo o que houve na sua família. Mas tu tens o poder de escolher agora, o conforto ou abdicar dele, e cada um tem um preço e retorno. O que você vai preferir? - o velhinho disse as últimas palavras estendendo as mãos para a minha mana.

Ela ficou alguns segundos tremendo enquanto dava a mão muito devagar, soluçava em choros. Até finalmente tocar na mão do velho e ele sorrir para ela.

Saí do auditório chorando enquanto a mana continuava lá dentro de mãos dadas com ele. Olhei para o céu mesmo com os raios de sol batendo em meu rosto e pensei. "Talvez Deus nunca esteve errado, nós apenas nunca conseguimos compreender com tanta dor para suportar." 


Hadil Almeida

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