sexta-feira, 17 de março de 2023

Carro de fuga - Um conto de Hadil Almeida


Carro de fuga

 

Ele tremia cada vez com mais intensidade, como se tivesse prestes a convulsionar, segurava fortemente o volante para manter a estabilidade do carro, e só assim, conseguiu estacionar de fronte ao banco. Respirou aliviado olhando para mim, eu estava sentado no banco do passageiro da frenteele transpareceu a turbulência em suas emoções perguntou:

— E se esse assalto der errado, mano?

— O quê? — olhei para ele preocupado. — Estás com dúvida do nosso plano? Essa não é a hora de ter dúvidas. Nós já estamos debaixo da chuva, no meio da porra da tempestade. 

— Não estamos, ainda. Nós podemos desistir. 

— Que merda é essa agora? Isso já não depende apenas de nós. Essas cinco pessoas aí atrás apostaram tudo nessa jogada durante esses meses todos. Não temos outra opção a não ser executar o plano com perfeição. — Os outros não conseguiam ouvir-nos porque o carro era apenas de dois lugares, eles estavam lá atrás da velha ambulância que tranformamos em uma máquina para deixar perfeita para o plano. 

Em um tom de voz baixo ele retrucou.

 Eu sei que o nosso plano é a prova de fogo, mas e se der errado? E se por acaso nós dois morrermos por algum imprevisto. Quem vai cuidar da mama?

— Nós! Nós! — gritei e coloquei a arma no porta luvas. — Nós vamos cuidar da mama, por isso temos que sair daqui vivos, os dois, senão ela morre por perder um de nós. — Retirei a bata de paramédico e desapertei um pouco o colete anti-bala. Aquela conversa parecia começar a afectar minhas emoções e consequentemente minha respiração. Virei calmamente para ele e interrompeu-me dizendo: 

— Lembras o que conversamos no dia em que o pai morreu?

— Que nunca deixariamos a mama ter outro marido? — respondi após alguns segundos pensativo. Ele sorriu. Eu fiquei satisfeito porque conseguir descontraí-lo. 

— Também lembro dessa promessa, mas me refiro aquela que fizemos no dia do funeral. 

Dei-lhe as mãos. Suas mãos estavam suadas, mas segurei mesmo assim. 

 Lembro sim. Nós prometemos que seríamos o pai um do outro até que a morte nos separasse. E que cuidariamos da mama ainda que isso custasse nossas vidas.

— Sim. Eu tinha dezassete e você dezanove... — retrucou lacrimejando.

— E desde então nós temos cumprido essa promessa, dez anos anos depois, e hoje não será diferente. O desgraçado desse gerente de banco merece a culpa que ele vai levar pelo que ele fez com a mama. O que se faz na terra se paga na terra. Hoje nós somos deuses e faremos justiça.

— Desculpa ficar assim, mas eu estou realmente com medo, estou com um mau pressentimento. E agora te vi com uma arma, isso não estava nos planos. 

— Calma! Apenas se preocupe em nos tirar daqui assim que sairmos de lá. Deixa o resto conosco, há partes do plano que não precisas saber. Eu sei como você é emocional. 

— Vão matar alguém?

— Não. De forma alguma. Olha! Faltam três minutos apenas. — mostrei-lhe a hora na telinha do carro. Ele limpou suas mãos suadas e respirou profundamente. 

— No meio da tempestade, quais são as chances de sermos atingidos por um raio?

— Nós já fomos atingidos por vários raios a vida toda. Hoje é o dia que a tempestade acaba e vemos o arco-íris.— Passei as mãos no rosto e terminei dizendo. — Você prometeu!

— O quê? — ele perguntou

— Que comprarias o berço para minha filha. E segundo os médicos ela nasce em dois dias. Precisas estar vivo para cumprir essa promessa, então arranque esse medo

— Eu serei o melhor padrinho do mundo e você o melhor pai, mano. Entre e traga o meu dinheiro que comprarei mais do que um berço. Espero por ti aqui

Retirei a arma do porta-luvas e entreguei-o dizendo:

— No caso de qualquer imprevisto, use. Se nós não tivermos voltado quando o teu relógio apitar, fuja. Deixei uma mochila com a minha esposa, ela sabe o que tem de fazer caso eu não sobreviver, já expliquei tudo para ela, façam.

— Por que você tem um plano B?

— Porque apesar de tudo eu tenho que pensar em todas as hipóteses. Eu sou o teu pai, estou apenas a cumprir a promessa. — respondi sem transparecer minha inquietação.

— Lembras do que o pai dizia: “Homens medianos têm um plano, homens de sucesso executam com excelência.” Que se lixa o teu plano B. 

O relógio bipou, era hora de entrarmos. Alguém lá atrás bateu na chaparia e saimos todos do carro excepto o meu irmão mais novo que era o nosso motorista de fuga. Alguns de nós estavámos vestidos de paramédicos e outros como agentes da polícia. Entramos. 

***

Uns minutos após o meu irmão e os outros entrarem, um agente da polícia bateu no vidro do carro dizendo: 

— Bom dia! Os documentos, faz favor! 

Eu não tinha documento algum, apenas uma arma no porta luvas pronta para ser usada. Fingi procurar meus documentos e ouvimos disparos vindo de dentro do banco. Ainda faltavam cinco minutos para eles saírem, e era preocupante porque não havia disparos previsto no plano.O agente da polícia pediu que eu retirasse o carro dali imediatamente e começou a chamar reforço. Quando ele estava prestes a dizer a localização, eu retirei a arma do porta-luvas, eu nunca tinha usado uma arma antes, mas naquele instante eu tinha a certeza que o momento havia chegado.

Apontei a arma sem sair do carro. Ele largou o comunicador, pisoteou e ajoelhou-se colocando as mãos atrás da cabeça. Ele estava com uma arma na cintura, eu estava receoso que ele pegasse, então eu tinha que disparar primeiro. Respirei fundo, mas sem coragem embora talvez precisasse realmente disparar.  

Eles saíram do banco correndo, faltando dois minutos no relógio. Entraram na parte traseira do carro e gritavam em quase um tumulto para que eu arrancasse. Eu não tinha visto o meu irmão saindo do banco nem entrando no carro. 

— Onde está o meu irmão? Onde está o meu irmão? – eu gritava repetidamente para eles.

E alguém lá atrás apenas respondia:

— Vamos! Vamos! Arranca! 

— Eu não vou sem o meu irmão. – meu relógio emitiu o som. Era hora de partir, mas eu não podia partir sem o meu irmão. 

Lá atrás eles estavam desesperados para que eu saísse. O tumulto era notável. Eu sabia os riscos de ficar aí parado, mas não podia deixá-lo para trás. Coloquei uma máscara e desci do carro me dirigindo em direção ao banco. E vi meu irmão saindo coxeando e sangrando. Com a ajuda de outro dos nossos rapidamente o pusemos no assento do passageiro da frente

— Eu trouxe o dinheiro do berço, me leva para a minha família. — falou ofegante.

Arranquei o carro, mas já era tarde. Eu conseguia ver um carro da polícia pelo retrovisor. Meu irmão gritava de dor e sangrava, eu mal conseguia perceber em que parte do corpo ele estava ferido. Eu apenas continuava acelerando e desviando de tudo e todos. Num piscar de olhostodo corpo dele inclinou-se para frente sendo apenas impedido pelo sinto de segurança de bater o rosto no carro. Um desmaio no estado em que ele estava poderia lhe levar a morte. Mas não tinha como parar, tudo que eu precisava fazer é continuar dirigindo o mais rápido possível e despistar os polícias. Olhei para o retrovisor e agora eram dois carros atrás de nós. “Que merda! Isso não estava nos planos.”


Continua…


Parte 2

Sentado a mesa em um restaurante caro algures pela cidade, senti o toque de um senhor no meu ombro, quando olhei era uma homem de barba branca. O senhor pediu que se sentasse a mesa comigo, sem problema algum deixei-o que ocupasse um dos assentos a mesa de quatro lugares.

Ele olhava para mim inquieto, até que, finalmente se pronunciou. 

- Por que um jovem como você está aqui tão tarde da noite bebendo whisky sozinho?

- Há lugar melhor para estar e refletir sobre problemas financeiros? Há companhia melhor se não a minha própria? 

Ele sorriu e disse: 

- Eu já fui como você, desesperado, falido, persistente e disposto a tudo.

- Pareço tudo isso? - perguntei descontente.

Ele sorriu antes de responder.

- Hoje é dia de São Valentim e você está num restaurante totalmente decorado, sozinho, pensando sobre seus problemas financeiros, há desespero maior? 

- Ainda assim não vejo onde se encontra todas as características que o senhor tirou de mim! - Dei o último gole no meu copo com whisky. Voltei a dizer com ironia: 

 - O que o senhor que já passou por essa fase me sugere?

Ele mais uma vez sorriu antes de responder.

 - Sugiro que contrates um excelente piloto de fuga e tenhas dois carros de fuga. O primeiro para saíres do local do crime; o segundo para despistares os policiais e seres mais veloz. 

Fiquei estupefato. Como ele sabia o que eu estava a planejar? - perguntei para mim mesmo completamente incrédulo de que, muito além dele ter descoberto, ainda tentava me ajudar. 

- Desculpa! Acho que o senhor interpretou mal o meu problema financeiro. - menti.

- Ah! Deixa disso, mô puto! Apenas ouça o meu conselho. 

- Mas eu não sei do que o senhor está falar!

Ele sorriu. Retirou um papel do bolso do terno e colocou na mesa. "Que merda!" Pensei logo que vi. Era um dos meus papéis, que há alguns minutos atrás estava na minha mesa. 

- Li a sua lista! E falta um carro de fuga a mais. Pelo pouco que vi, o plano é impecável, mas esse é o único erro. Aliás, leve armas de verdade também, cenas como essa sempre acontecem imprevistos. -falou piscando o olho no final.

Eu tentei rebater, mas naquele momento ouvimos a voz de uma mulher a dizer:

- Olá, amor! - Em seguida beijaram-se.

- Amor, você acredita? Esse jovem quer fazer um 114 e só tem um carro de fuga. - ela deu uma gargalhada tremenda. 

O facto dela ter entendido o código dei-me logo a entender que era um casal de assaltantes.

Ele se levantou e colocou os seus braços em volta aos ombros dela. Ela disse seriamente antes de se retirarem.

- Tenha dois carros! Que o primeiro seja parecido com uma ambulância, ajudará a carregarem o peso, tem espaço caso alguém se ferir e podem estacionar em qualquer lugar sem suspeitas, isso caso conseguirem sair com o dinheiro é claro. E o segundo, recomendo a porra de um verdadeiro carro de fuga. Senão acabam todos mortos. 

Beijou o seu cartão de visita deixando uma marca do seu batom vermelho e colocou na mesa a minha disposição. 

- Ligue caso precisares!  - E se retiram sorrindo. Ainda ouvi um murmúrio do senhor dizendo à mulher. 

- Esse inexperiente teve sorte que não foi um polícia que apanhou aquele papel. - sorriram caminhando.


 ***

Despertei assustado, respirando ofegantemente dentro da ambulância em fuga. 

- O que é que está a acontecer? O que é que está a acontecer? - Gritei. 

Olhei para o meu irmão conduzindo o carro totalmente focado na estrada. Ele nem sequer olhou para mim, apenas deu um sorriso continuando a condução em alta velocidade.  

- Eu estava totalmente assustado. Pensei que você tivesse a morrer, mas não podia parar o carro. - falou baixinho enquanto respirava aliviado.

Percebi que eu estava a sangrar muito. Precisava de primeiros socorros urgentemente, nem o colete anti-bala me livrou daquele tiro, porém, eu estava satisfeito porque o gerente pagaria por tudo, muito mais que um roubo a vingança estava imposta, e ele com certeza seria incriminado como cúmplice desse assalto. 

- Estamos próximo do segundo carro de fuga? - perguntei.

- Sim, e o pior é que agora são três carros da polícia a nossa trás. Não consigo me livrar deles e não teremos como trocar de carro. 

Eu sentia meu corpo enfraquecendo aos poucos, mas não podia me deixar ceder, não naquele momento crucial. Fiz o maior esforço que pude e falei pelo rádio para o pessoal lá trás. 

- Pessoal! 

Ouvi gritos de alegria quando ouviram minha voz.

- Pessoal! Foco! Não é momento para celebrar. Activem o 444 e se livrem dos carros da polícia, não temos alternativa.

- É sério? 

- Sim.

- Mas todos eles vão morrer!

- Vocês preferem que eles morram ou nós? 

E houve um silêncio do outro lado. Até que um deles concordou e os outros em seguida. 

Abriram a pequena janela na porta, o homem colocou uma metralhadora no buraco, respirou fundo e começou a disparar sem cessar contra o carro da polícia que estava mais próximo. Quando ele parou, percebeu que os outros dois carros haviam parado de nos seguir também. Voltou a metralhadora para dentro do carro enquanto tremia intensamente, porque bem lá no fundo, ele sabia que tinha matado só não quis admitir para si mesmo. Havia um silêncio perturbador lá na parte de trás.

Meu irmão fez uma curva perigosa, eu bati com a cabeça no vidro e ele estacionou. Descemos todos do carro. A única mulher no nosso meio veio logo abraçar-me. Ajudou-me a tirar o colete, derramou álcool sobre a ferida e colocou ligadura em volta da minha barriga. 

- Você não vai morrer, cuidamos do resto depois. 


Havia dois carros de fuga lá onde paramos. O plano era dividirmos o nosso grupo de sete em dois. Eu, meu irmão, a minha amiga e o homem que disparou contra a polícia iríamos no mesmo carro, os outros três no outro.  Tão logo meu irmão colocou o dinheiro no porta-malas, dois dos outros três homens apontaram-nos com as armas. 

- Desculpem! Mas a vida é o que é. Coloquem as quatro pastas no nosso porta-malas sem fazerem nenhuma confusão.. 

- Vocês vão nos trair depois de tudo? 

- E quem garante que vocês não fariam o mesmo? - os dois grupos estavam de lados opostos, nos olhando frente a frente. 

- Por isso desde o princípio se escolheram os quatro para irem no mesmo carro. E por que o dinheiro tem que ir no vosso carro? Por que não dividirmos em dois carros e depois juntamos?

- Você esteve lá quando acertamos tudo! O dinheiro vai num só carro para que seja levado à senhora do batom e depois ela vai enviar dinheiro limpo. Não podemos ir todos levar o dinheiro logo após o roubo. - falei visivelmente com ódio nos olhos por sentir-se traído.

- Calmem! - disse o meu irmão. - Nós podemos trocar, vocês os dois vão  connosco onde entregaremos o dinheiro. 

- Sim, boa ideia! - disse um dos traidores.


Assim que eles dois marcaram passos em direção ao nosso carro, a mulher e o nosso atirador de metralha caminharem para o carro deles. Eu gritei:

- Não! Eu pensei que esse grupo fosse estabelecido por confiança. - o relógio de todos bipou, interrompendo minhas falas. Aquele bip era o alerta que já devíamos estar noutra parte do plano de fuga, porém estávamos ali parados tendo revelações. 

- Vocês dois nos apontaram com armas e nos acusaram de traidores, ainda esperam que realmente eu confie em vocês? Não devo! vocês podem muito bem nos matar antes de chegarmos na senhora do batom. 

- Nós só queríamos garantias, é claro que não vamos vos matar! - o homem sorrindo como se eu tivesse contado uma piada. Em seguida colocou de volta a sua arma na cintura, fez sinal para que o outro fizesse o mesmo.

- E agora eu tenho garantias que não posso confiar em vocês e é claro que vou vos matar. - Sem piscar os olhos apontei a minha arma e disparei na cabeça do primeiro traidor por estar bem próximo a mim.  Os nossos relógios biparam mais uma vez. Falei olhando para o outro homem que já tremia:

- Esse seria o bip alertando que tudo tinha que estar terminado, ao invés disso, você transformou o bip que a tua hora chegou. Você quase me deixou morrer lá no banco me abandonando, mas eu vou garantir que você morra realmente. - friamente disparei na cabeça dele assim que ele tentou retirar a armada cintura.


Houve um silêncio ecoando o ambiente. Eles olhavam para mim chocados. 

- Mais alguém tem dúvida se eu sou um traidor? 

- Não temos tempo para mais uma palhaçada! Vamos antes que a polícia chegue. - disse o atirador entrando no carro que não tinha dinheiro e atirou a chave para o meu irmão. O terceiro homem que se manteve calado o tempo inteiro também entrou e os três seguiram o plano acelerando daí para fora.


Eu fiquei no assento do passageiro. E a minha amiga era a motorista. Saímos acelerando daí. Antes de irmos todos, colocamos os cadáveres dentro do carro da ambulância e ateamos fogo. Quanto menos a polícia souber sobre os mortos, melhor para quem sobreviveu. 

Retirei um telefone do porta-luvas e enviei uma mensagem para a senhora do batom com um simples emoji de um lábio de batom vermelho. Em seguida disquei outro número. 

- Alô! 

- Alô, mãe! Sou eu! 

- Meu filho, tudo bem? 

Olhei para minha barriga sangrando, olhei para foto da minha namorada grávida e olhei para uma das pastas de dinheiro no banco de trás e respondi: 

- Sim, está tudo bem, nunca estivemos melhor.

Hadil Almeida

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