sábado, 5 de setembro de 2020

 “Talvez a gente possa decidir quando morrer, mas depois de morto jamais podemos decidir quando voltar a viver.”





Por um Triz

Naquela manhã cinzenta em que o sol decidira dormir até tarde, Raquel despertou com as palavras que lhe foram proferidas pelo seu pai na noite anterior ressoando na sua cabeça. “Você é uma merda. Por que você não morreu em vez da sua mãe? Você não serve para nada. Você nunca devia ter nascido.” Quis chorar, mas desde a morte da sua mãe que já não conseguia chorar por nada. Levantou-se da cama, tirou três cigarros do maço que guardava debaixo do colchão; colocou a música alta e foi sentar no peitoril da janela enquanto acendia um dos cigarros. “Vindo da igreja, mas não entendi nada…” Ouvia a música “Mamadi” dos Lambas sendo reproduzida; lembrou-se que fazia tempo que não frequentava a igreja, a última vez que lá esteve foi na missa fúnebre da sua mãe. Fechou os olhos e abriu lentamente, olhou fixamente para o céu, quis ver Deus, mas lembrou-se que prometeu não mais falar com Deus por ter permitido que sua mãe morresse.
Fazia tempo que Raquel havia se desligado do mundo, era como se tivesse morrido no mesmo dia que a sua mãe. A dor havia consumido ela completamente e infelizmente ela não conseguia lutar contra isso. No momento que ela mais precisava de braços para chorar mais pessoas afastaram-se dela, algumas diziam que ela tornou-se fria demais.
Entre viver ou morrer, qual é a diferença quando você não faz diferença? – Raquel perguntou para si mesma enquanto acendia outro cigarro. Soltou um leve sorriso, teve a impressão que viu sua mãe olhando para ela. Pensou em como sua vida mudou tanto, como seu pai tornou-se um ser repugnante e como muitos de seus amigos deixaram de ser. Ela sabia que o afastamento social causado pela dor era penoso demais; ela podia dizer não querer a companhia de ninguém, mas ela precisava sentir que tinha pessoas que importavam-se com ela.
Raquel apagou o cigarro e foi sentar em sua cama. Arrancou uma folha do seu caderno de apontamentos, fazia tempo que a escrita era o seu refúgio; Porém, nos últimos dias estava sem vontade de escrever nada, não queria nem conversar consigo mesma. Prometeu para si mesma que essa seria a última vez que escreveria algo, e, diferente de todos outros seus textos, esse teria de ser lido por todos que quisessem ler. Tirou a sua caneta, o último presente que havia recebido da sua mãe, e com lágrimas nos olhos sorriu e começou a escrever.
“Eu nunca quis desistir de mim, mas eu precisava sentir-me importante para querer continuar por aqui. Porém, eu não me sinto importante nem para mim e nem para ninguém, logo não é justo para mim nem para vocês que eu esteja aqui. Sempre fui contra o suicídio, mas agora entendo o que muitas pessoas sentiram antes de cometer, nada melhor do que você estar na situação para realmente entender com é. Eu desejo que vocês nunca sintam o que eu sinto nesse momento, não quero nunca que vocês estejam na minha situação; eu vou desistir por todos nós, vocês já não o precisam fazer. Cuidado com as vossas palavras, elas ferem muito mais do que muitos de vocês pensam. Nunca pensei em resumir a minha vida em uma carta, mas agora percebo que faz tempo que deixei de viver e nada tenho para escrever. Fiquem bem, a gente se vê um dia se… Ele quiser, não é justo mencionar o dono da vida nessa carta. Pai, eu te amo, e muito obrigado pelas suas palavras, elas me fizeram entender o que eu me recusava faz algum tempo.”

Raquel acendeu outro cigarro assim que terminou de escrever, apreciava cada baforada com amor. Reproduziu a música “Njila ia Dikanga” de Paulo flores e Yuri da Cunha e deu umas passadas dançando abraçada a si mesma, disse para si mesma que os seus últimos minutos de vida mereciam ser felizes; reproduziu o instrumental da música “Comboio” dos lambas e dançou Kuduro até cansar. Deitou-se em sua cama e ficou apreciando o tecto, soltou um sorriso só de pensar que podia estar com todas as estrelas que um dia conheceu por aqui, deu beijo no seu livro favorito, “Eu conheço as estrelas”.  
Raquel levantou-se e colocou um banco bem no meio da sua cama, fez um esforço e conseguiu amarrar uma corda num dos ferros que seguravam as chapas; sentiu-se feliz por ver o nó tão perfeito do tamanho do seu pescoço. Desligou a música e lentamente subiu no banco, queria ter silêncio para apreciar até o último instante o som da sua respiração; colocou a corda no pescoço e fechou os olhos disposta a terminar com a sua vida. Antes de desfazer-se do banco ouviu o toque de mensagem do seu telefone, pensou em ignorar, mas decidiu dar-se a oportunidade de ler à última mensagem da sua vida. Retirou a corda do pescoço, desceu do banco e foi pegar o seu telefone.
“Talvez a gente possa decidir quando morrer, mas depois de morto jamais podemos decidir quando voltar a viver. A vida é dura e eu sei que não tem sido simpática para ti, hoje mais do que nunca eu te entendo. Acabei de perder a minha mãe, preciso muito de ti. Desculpa por não ter entendido a sua dor antes. ”
Era a mensagem do Gerson, seu melhor amigo. Fazia tempo que eles não falavam. Raquel sentou-se na cama e ficou refletindo sobre a frase “Talvez a gente possa decidir quando morrer, mas depois de morto jamais podemos decidir quando voltar a viver.” Chorou amargamente quando olhou para à corda amarrada ao teu tecto; sentou-se na cama e sentiu-se mais triste por saber que agora seu melhor amigo também havia perdido a mãe, Dona Helda sempre foi como uma mãe para ela também. Subiu lentamente no banco e desamarrou a corda, deu um sorriso irônico por saber que por um triz ela já não estaria mais aqui. Pegou no seu telefone e reproduziu a música do Martinho da Vila “Canta, canta, minha gente”, e com lagrimas nos olhos cantou:
Canta, canta, minha gente
Deixa a tristeza pra lá
Canta forte, canta alto
Que a vida vai melhorar
Que a vida vai melhorar
Que a vida vai melhorar.

 [Por: Luis da Silva Ubuntu no livro Contador de contos]

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