sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Eu não me sinto okay - Um conto de Hadil Almeida

 


CONTOS ÀS SEXTAS 
22 de Set 2023

Título: Eu não me sinto okay
Autor: Hadil Almeida 


Tive um susto ao ouvir o som alto da buzina de um camião passando em alta velocidade tão perto de mim. Foi como o despertar do meu cérebro mesmo eu já estando acordado.
— Sai dali, maluco!
— Se quer morrer não procura culpado, bicho.
Duas pessoas gritaram comigo. Percebi que eu estava parado em pé, inconsequentemente fora do passeio, bem na estrada. E que a buzina do camião tinha sido para mim. 

Retirei os auscultadores e sentei num banquinho de plástico tentando me concentrar, baixei a cabeça e passei as mãos pelo rosto, controlando a respiração calmamente. Repousei meus cotovelos sobre minhas coxas e meu rosto sobre minhas mãos.

— Agora estás a dar uma da estátua do Pensador, né! Podiam te avunar naquele camião, ˊTás a pensar que a estrada é do teu pai né? — disse um jovem equipado como um motoqueiro passando por mim. Não respondi.

Creio que nem se passaram sessenta segundos quando uma zungueira vendendo garrafas de água se aproximou de mim gritando:
— Levanta do banco do mô filho, xé! Esse banco comprei mil, ontem.

Levantei sem retrucar, reparei no filho dela sendo carregado às costas amarrado por um pano laranja. Decidi comprar água nela mesma, e em seguida ela replicou:
— Agora sim, podes sentar! — Recusei a oferta e prossegui meu caminho.

A cada passo meu, eu refletia se continuaria tendo esses momentos em que fico fora de mim. Eu sentia que a perda dela era culpa minha, que se eu tivesse tomado decisões diferentes teríamos tido outros destinos. Fico me perguntando se realmente fomos feitos à semelhança de Deus, porque não faz sentido que assim seja, e ainda assim nos permitimos ver os outros em aflição sem sequer ajudarmos. Por que  tinha que acontecer aquilo com ela? E por que no meio de malditos estranhos insensíveis que a deixaram contorcer de dor? 

“Eu não posso ser só mais um maldito estranho na vida das pessoas.” Pensei comigo. Abri a minha carteira e retirei a página que rasguei do livro favorito dela, na verdade o único livro que ela leu por completo por ter aprendido a ler muito tarde em sua vida, li a frase que ela sempre repetia: “Por onde passares faça o bem. Porque pode ser a última vez que por lá passas.” Contive minha respiração ofegante. Relembrando que essa era a única frase que ela falava usando uma linguagem cuidada, e eu sempre fazia piadas por isso. E ela respondia em kikongo e sorrindo.  

Retirei o telefone do bolso e haviam nove chamadas de “Meu bem!”, logo pensei: “Para que ligar nove vezes? É fácil perceber que a pessoa deve estar ocupada.” Instantaneamente caiu uma notificação de mensagem de “Meu bem” dizendo: “Atende! Eu sei que não estás ocupado.” Logo pensei, “Ela me conhece muito bem.” Ainda assim, continuei ignorando a chamada.

A confusão habitual na paragem de táxi era exaustiva. Quando finalmente consegui entrar num carro, vi uma mulher segurando um bebe recém-nascido do lado de fora do carro. Percebendo que ela iria no mesmo destino que eu, cedi o meu lugar para ela antes que o carro arrancasse. E voltei na luta por outro táxi. Durante um tempo considerável correndo atrás de táxis que no final nem iam ao meu destino, apareceram dois meninos de uniforme pedindo que eu os ajudasse a atravessar a estrada. Exalei profundamente, levei-os para o outro lado. Antes que eu conseguisse retornar para o lado onde eu estava, pararam dois carros que iriam ao meu destino. Mas lotaram antes que eu atravessasse. Olhei para os dois meninos, que ainda estavam perto de mim, sem saber se tê-los feito atravessar foi uma decisão sábia.
— Obrigado, meu cota! Que Deus te abençoe!
Meneei a cabeça positivamente ao ouvir e tive certeza que foi sim uma boa decisão.

Atravessei a estrada , não demorei para pegar o táxi e rumar ao meu destino. Ao longo do trajecto apercebi-me de uma discussão fervorosa entre uma senhora e o cobrador. Tudo porque ela dizia que supostamente havia deixado cair o dinheiro e não tinha como pagar. E pesava ainda mais para o cobrador porque ela estava acompanhada de três crianças. Baixei completamente o volume do som dos meus auriculares e me disponibilizei em pagar o táxi. Porém o cobrador não queria aceitar que outra pessoa pagasse por ela, alegando que a senhora era mal-educada e não aceitaria de outra pessoa. Por essa razão a discussão se prolongou até que finalmente o motorista aceitou receber porque se dependesse do cobrador segundo ele, a senhora sofreria consequências.

Saí daquele táxi com o assunto resolvido. 
Caminhei um pouco e parei de frente ao portão da residência que era meu destino e logo comecei a sentir-me fraco emocionalmente. Desde o ocorrido que eu tenho tentado ser o bom samaritano para tampar o sol com peneira de que o bem sempre vence, fingindo para mim mesmo que o bem rege o mundo. Eu tentava me convencer que sim. Entretanto, cada vez eu me questionava, por que havia um vídeo daquele acidente em que pessoas davam seus últimos suspiros e uma multidão em volta do acidente, mas ninguém prestou o devido socorro? E ela se foi junto com aquela gente! Se calhar eu devia deixar o mundo seguir rumo que tem seguido há anos, reconhecer que não serão as minhas atitudes que mudarão este mundo cruel. 

“Se calhar eu devia mandar lixar todos estranhos assim como eles fizeram com ela!” Respirei fundo! “Se calhar foi isso que alguém pensou por isso a mandaram lixar naquela circunstância.” 

Fiquei do lado de fora apenas tentando acalmar minhas emoções, meus tremores e a angústia profunda em saber que quando eu entrasse por aquela porta tudo seria diferente do que alguma vez foi. Passei as mãos pelo rosto e limpei minhas lágrimas e refleti: “Não quero fazer o bem para que o mundo me pague de volta. Mas também não quero ser deixado à tempestade quando eu precisar que o mundo me dê uma sombrinha.” 

Alguém abraçou-me pelas costas. Virei-me e vi que era o “Meu bem!” Ficámos em silêncio por alguns instantes apenas nos entreolhando, ela limpou minhas lágrimas e quebrou o silêncio. 
— Eu estarei contigo para o que der e vier! Sinto muito pela perda da tua mãe.

Hadil Almeida

📚🎉 Já disponível os novos exemplares do livro “Dilenu! Uma noite para esquecer”, de Hadil Almeida e Luis da Silva Ubuntu 

Contactos: 
929594688 - 938814777
Email: Phrasesandpoems@gmail.com

14 comentários:

  1. Fazer o bem é uma das melhores virtudes enquanto seres vivos, porque a cada bem feito, ganhamos benção e mais energia divina. História emocionante🥀

    ResponderExcluir
  2. É simplesmente incrível a maneira como escreves. Algumas vezes tenho o péssimo hábito de não terminar a leitura de textos extensos, mas os vossos, eu não posso! Provaram o vosso valor na escrita há anos e se tudo o que eu preciso fazer por vocês é divulgar o vosso trabalho, eu farei. Creio que todo esse vosso esforço tem um resultado profíquo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado por teres terminado! 💖💖💖

      Excluir
  3. Para dizer a verdade, os seus escritos são saborosos♥️One love ♥️

    ResponderExcluir
  4. Eu não consigo ficar um dia sem ler os vossos livros, estou a ficar viciado

    ResponderExcluir
  5. Lindo texto, sempre me surpreendendo. Ihh🥹🙏🏿

    ResponderExcluir

Random Posts