sexta-feira, 17 de março de 2023

Carro de fuga - Um conto de Hadil Almeida


Carro de fuga

 

Ele tremia cada vez com mais intensidade, como se tivesse prestes a convulsionar, segurava fortemente o volante para manter a estabilidade do carro, e só assim, conseguiu estacionar de fronte ao banco. Respirou aliviado olhando para mim, eu estava sentado no banco do passageiro da frenteele transpareceu a turbulência em suas emoções perguntou:

— E se esse assalto der errado, mano?

— O quê? — olhei para ele preocupado. — Estás com dúvida do nosso plano? Essa não é a hora de ter dúvidas. Nós já estamos debaixo da chuva, no meio da porra da tempestade. 

— Não estamos, ainda. Nós podemos desistir. 

— Que merda é essa agora? Isso já não depende apenas de nós. Essas cinco pessoas aí atrás apostaram tudo nessa jogada durante esses meses todos. Não temos outra opção a não ser executar o plano com perfeição. — Os outros não conseguiam ouvir-nos porque o carro era apenas de dois lugares, eles estavam lá atrás da velha ambulância que tranformamos em uma máquina para deixar perfeita para o plano. 

Em um tom de voz baixo ele retrucou.

 Eu sei que o nosso plano é a prova de fogo, mas e se der errado? E se por acaso nós dois morrermos por algum imprevisto. Quem vai cuidar da mama?

— Nós! Nós! — gritei e coloquei a arma no porta luvas. — Nós vamos cuidar da mama, por isso temos que sair daqui vivos, os dois, senão ela morre por perder um de nós. — Retirei a bata de paramédico e desapertei um pouco o colete anti-bala. Aquela conversa parecia começar a afectar minhas emoções e consequentemente minha respiração. Virei calmamente para ele e interrompeu-me dizendo: 

— Lembras o que conversamos no dia em que o pai morreu?

— Que nunca deixariamos a mama ter outro marido? — respondi após alguns segundos pensativo. Ele sorriu. Eu fiquei satisfeito porque conseguir descontraí-lo. 

— Também lembro dessa promessa, mas me refiro aquela que fizemos no dia do funeral. 

Dei-lhe as mãos. Suas mãos estavam suadas, mas segurei mesmo assim. 

 Lembro sim. Nós prometemos que seríamos o pai um do outro até que a morte nos separasse. E que cuidariamos da mama ainda que isso custasse nossas vidas.

— Sim. Eu tinha dezassete e você dezanove... — retrucou lacrimejando.

— E desde então nós temos cumprido essa promessa, dez anos anos depois, e hoje não será diferente. O desgraçado desse gerente de banco merece a culpa que ele vai levar pelo que ele fez com a mama. O que se faz na terra se paga na terra. Hoje nós somos deuses e faremos justiça.

— Desculpa ficar assim, mas eu estou realmente com medo, estou com um mau pressentimento. E agora te vi com uma arma, isso não estava nos planos. 

— Calma! Apenas se preocupe em nos tirar daqui assim que sairmos de lá. Deixa o resto conosco, há partes do plano que não precisas saber. Eu sei como você é emocional. 

— Vão matar alguém?

— Não. De forma alguma. Olha! Faltam três minutos apenas. — mostrei-lhe a hora na telinha do carro. Ele limpou suas mãos suadas e respirou profundamente. 

— No meio da tempestade, quais são as chances de sermos atingidos por um raio?

— Nós já fomos atingidos por vários raios a vida toda. Hoje é o dia que a tempestade acaba e vemos o arco-íris.— Passei as mãos no rosto e terminei dizendo. — Você prometeu!

— O quê? — ele perguntou

— Que comprarias o berço para minha filha. E segundo os médicos ela nasce em dois dias. Precisas estar vivo para cumprir essa promessa, então arranque esse medo

— Eu serei o melhor padrinho do mundo e você o melhor pai, mano. Entre e traga o meu dinheiro que comprarei mais do que um berço. Espero por ti aqui

Retirei a arma do porta-luvas e entreguei-o dizendo:

— No caso de qualquer imprevisto, use. Se nós não tivermos voltado quando o teu relógio apitar, fuja. Deixei uma mochila com a minha esposa, ela sabe o que tem de fazer caso eu não sobreviver, já expliquei tudo para ela, façam.

— Por que você tem um plano B?

— Porque apesar de tudo eu tenho que pensar em todas as hipóteses. Eu sou o teu pai, estou apenas a cumprir a promessa. — respondi sem transparecer minha inquietação.

— Lembras do que o pai dizia: “Homens medianos têm um plano, homens de sucesso executam com excelência.” Que se lixa o teu plano B. 

O relógio bipou, era hora de entrarmos. Alguém lá atrás bateu na chaparia e saimos todos do carro excepto o meu irmão mais novo que era o nosso motorista de fuga. Alguns de nós estavámos vestidos de paramédicos e outros como agentes da polícia. Entramos. 

***

Uns minutos após o meu irmão e os outros entrarem, um agente da polícia bateu no vidro do carro dizendo: 

— Bom dia! Os documentos, faz favor! 

Eu não tinha documento algum, apenas uma arma no porta luvas pronta para ser usada. Fingi procurar meus documentos e ouvimos disparos vindo de dentro do banco. Ainda faltavam cinco minutos para eles saírem, e era preocupante porque não havia disparos previsto no plano.O agente da polícia pediu que eu retirasse o carro dali imediatamente e começou a chamar reforço. Quando ele estava prestes a dizer a localização, eu retirei a arma do porta-luvas, eu nunca tinha usado uma arma antes, mas naquele instante eu tinha a certeza que o momento havia chegado.

Apontei a arma sem sair do carro. Ele largou o comunicador, pisoteou e ajoelhou-se colocando as mãos atrás da cabeça. Ele estava com uma arma na cintura, eu estava receoso que ele pegasse, então eu tinha que disparar primeiro. Respirei fundo, mas sem coragem embora talvez precisasse realmente disparar.  

Eles saíram do banco correndo, faltando dois minutos no relógio. Entraram na parte traseira do carro e gritavam em quase um tumulto para que eu arrancasse. Eu não tinha visto o meu irmão saindo do banco nem entrando no carro. 

— Onde está o meu irmão? Onde está o meu irmão? – eu gritava repetidamente para eles.

E alguém lá atrás apenas respondia:

— Vamos! Vamos! Arranca! 

— Eu não vou sem o meu irmão. – meu relógio emitiu o som. Era hora de partir, mas eu não podia partir sem o meu irmão. 

Lá atrás eles estavam desesperados para que eu saísse. O tumulto era notável. Eu sabia os riscos de ficar aí parado, mas não podia deixá-lo para trás. Coloquei uma máscara e desci do carro me dirigindo em direção ao banco. E vi meu irmão saindo coxeando e sangrando. Com a ajuda de outro dos nossos rapidamente o pusemos no assento do passageiro da frente

— Eu trouxe o dinheiro do berço, me leva para a minha família. — falou ofegante.

Arranquei o carro, mas já era tarde. Eu conseguia ver um carro da polícia pelo retrovisor. Meu irmão gritava de dor e sangrava, eu mal conseguia perceber em que parte do corpo ele estava ferido. Eu apenas continuava acelerando e desviando de tudo e todos. Num piscar de olhostodo corpo dele inclinou-se para frente sendo apenas impedido pelo sinto de segurança de bater o rosto no carro. Um desmaio no estado em que ele estava poderia lhe levar a morte. Mas não tinha como parar, tudo que eu precisava fazer é continuar dirigindo o mais rápido possível e despistar os polícias. Olhei para o retrovisor e agora eram dois carros atrás de nós. “Que merda! Isso não estava nos planos.”


Continua…


Parte 2

Sentado a mesa em um restaurante caro algures pela cidade, senti o toque de um senhor no meu ombro, quando olhei era uma homem de barba branca. O senhor pediu que se sentasse a mesa comigo, sem problema algum deixei-o que ocupasse um dos assentos a mesa de quatro lugares.

Ele olhava para mim inquieto, até que, finalmente se pronunciou. 

- Por que um jovem como você está aqui tão tarde da noite bebendo whisky sozinho?

- Há lugar melhor para estar e refletir sobre problemas financeiros? Há companhia melhor se não a minha própria? 

Ele sorriu e disse: 

- Eu já fui como você, desesperado, falido, persistente e disposto a tudo.

- Pareço tudo isso? - perguntei descontente.

Ele sorriu antes de responder.

- Hoje é dia de São Valentim e você está num restaurante totalmente decorado, sozinho, pensando sobre seus problemas financeiros, há desespero maior? 

- Ainda assim não vejo onde se encontra todas as características que o senhor tirou de mim! - Dei o último gole no meu copo com whisky. Voltei a dizer com ironia: 

 - O que o senhor que já passou por essa fase me sugere?

Ele mais uma vez sorriu antes de responder.

 - Sugiro que contrates um excelente piloto de fuga e tenhas dois carros de fuga. O primeiro para saíres do local do crime; o segundo para despistares os policiais e seres mais veloz. 

Fiquei estupefato. Como ele sabia o que eu estava a planejar? - perguntei para mim mesmo completamente incrédulo de que, muito além dele ter descoberto, ainda tentava me ajudar. 

- Desculpa! Acho que o senhor interpretou mal o meu problema financeiro. - menti.

- Ah! Deixa disso, mô puto! Apenas ouça o meu conselho. 

- Mas eu não sei do que o senhor está falar!

Ele sorriu. Retirou um papel do bolso do terno e colocou na mesa. "Que merda!" Pensei logo que vi. Era um dos meus papéis, que há alguns minutos atrás estava na minha mesa. 

- Li a sua lista! E falta um carro de fuga a mais. Pelo pouco que vi, o plano é impecável, mas esse é o único erro. Aliás, leve armas de verdade também, cenas como essa sempre acontecem imprevistos. -falou piscando o olho no final.

Eu tentei rebater, mas naquele momento ouvimos a voz de uma mulher a dizer:

- Olá, amor! - Em seguida beijaram-se.

- Amor, você acredita? Esse jovem quer fazer um 114 e só tem um carro de fuga. - ela deu uma gargalhada tremenda. 

O facto dela ter entendido o código dei-me logo a entender que era um casal de assaltantes.

Ele se levantou e colocou os seus braços em volta aos ombros dela. Ela disse seriamente antes de se retirarem.

- Tenha dois carros! Que o primeiro seja parecido com uma ambulância, ajudará a carregarem o peso, tem espaço caso alguém se ferir e podem estacionar em qualquer lugar sem suspeitas, isso caso conseguirem sair com o dinheiro é claro. E o segundo, recomendo a porra de um verdadeiro carro de fuga. Senão acabam todos mortos. 

Beijou o seu cartão de visita deixando uma marca do seu batom vermelho e colocou na mesa a minha disposição. 

- Ligue caso precisares!  - E se retiram sorrindo. Ainda ouvi um murmúrio do senhor dizendo à mulher. 

- Esse inexperiente teve sorte que não foi um polícia que apanhou aquele papel. - sorriram caminhando.


 ***

Despertei assustado, respirando ofegantemente dentro da ambulância em fuga. 

- O que é que está a acontecer? O que é que está a acontecer? - Gritei. 

Olhei para o meu irmão conduzindo o carro totalmente focado na estrada. Ele nem sequer olhou para mim, apenas deu um sorriso continuando a condução em alta velocidade.  

- Eu estava totalmente assustado. Pensei que você tivesse a morrer, mas não podia parar o carro. - falou baixinho enquanto respirava aliviado.

Percebi que eu estava a sangrar muito. Precisava de primeiros socorros urgentemente, nem o colete anti-bala me livrou daquele tiro, porém, eu estava satisfeito porque o gerente pagaria por tudo, muito mais que um roubo a vingança estava imposta, e ele com certeza seria incriminado como cúmplice desse assalto. 

- Estamos próximo do segundo carro de fuga? - perguntei.

- Sim, e o pior é que agora são três carros da polícia a nossa trás. Não consigo me livrar deles e não teremos como trocar de carro. 

Eu sentia meu corpo enfraquecendo aos poucos, mas não podia me deixar ceder, não naquele momento crucial. Fiz o maior esforço que pude e falei pelo rádio para o pessoal lá trás. 

- Pessoal! 

Ouvi gritos de alegria quando ouviram minha voz.

- Pessoal! Foco! Não é momento para celebrar. Activem o 444 e se livrem dos carros da polícia, não temos alternativa.

- É sério? 

- Sim.

- Mas todos eles vão morrer!

- Vocês preferem que eles morram ou nós? 

E houve um silêncio do outro lado. Até que um deles concordou e os outros em seguida. 

Abriram a pequena janela na porta, o homem colocou uma metralhadora no buraco, respirou fundo e começou a disparar sem cessar contra o carro da polícia que estava mais próximo. Quando ele parou, percebeu que os outros dois carros haviam parado de nos seguir também. Voltou a metralhadora para dentro do carro enquanto tremia intensamente, porque bem lá no fundo, ele sabia que tinha matado só não quis admitir para si mesmo. Havia um silêncio perturbador lá na parte de trás.

Meu irmão fez uma curva perigosa, eu bati com a cabeça no vidro e ele estacionou. Descemos todos do carro. A única mulher no nosso meio veio logo abraçar-me. Ajudou-me a tirar o colete, derramou álcool sobre a ferida e colocou ligadura em volta da minha barriga. 

- Você não vai morrer, cuidamos do resto depois. 


Havia dois carros de fuga lá onde paramos. O plano era dividirmos o nosso grupo de sete em dois. Eu, meu irmão, a minha amiga e o homem que disparou contra a polícia iríamos no mesmo carro, os outros três no outro.  Tão logo meu irmão colocou o dinheiro no porta-malas, dois dos outros três homens apontaram-nos com as armas. 

- Desculpem! Mas a vida é o que é. Coloquem as quatro pastas no nosso porta-malas sem fazerem nenhuma confusão.. 

- Vocês vão nos trair depois de tudo? 

- E quem garante que vocês não fariam o mesmo? - os dois grupos estavam de lados opostos, nos olhando frente a frente. 

- Por isso desde o princípio se escolheram os quatro para irem no mesmo carro. E por que o dinheiro tem que ir no vosso carro? Por que não dividirmos em dois carros e depois juntamos?

- Você esteve lá quando acertamos tudo! O dinheiro vai num só carro para que seja levado à senhora do batom e depois ela vai enviar dinheiro limpo. Não podemos ir todos levar o dinheiro logo após o roubo. - falei visivelmente com ódio nos olhos por sentir-se traído.

- Calmem! - disse o meu irmão. - Nós podemos trocar, vocês os dois vão  connosco onde entregaremos o dinheiro. 

- Sim, boa ideia! - disse um dos traidores.


Assim que eles dois marcaram passos em direção ao nosso carro, a mulher e o nosso atirador de metralha caminharem para o carro deles. Eu gritei:

- Não! Eu pensei que esse grupo fosse estabelecido por confiança. - o relógio de todos bipou, interrompendo minhas falas. Aquele bip era o alerta que já devíamos estar noutra parte do plano de fuga, porém estávamos ali parados tendo revelações. 

- Vocês dois nos apontaram com armas e nos acusaram de traidores, ainda esperam que realmente eu confie em vocês? Não devo! vocês podem muito bem nos matar antes de chegarmos na senhora do batom. 

- Nós só queríamos garantias, é claro que não vamos vos matar! - o homem sorrindo como se eu tivesse contado uma piada. Em seguida colocou de volta a sua arma na cintura, fez sinal para que o outro fizesse o mesmo.

- E agora eu tenho garantias que não posso confiar em vocês e é claro que vou vos matar. - Sem piscar os olhos apontei a minha arma e disparei na cabeça do primeiro traidor por estar bem próximo a mim.  Os nossos relógios biparam mais uma vez. Falei olhando para o outro homem que já tremia:

- Esse seria o bip alertando que tudo tinha que estar terminado, ao invés disso, você transformou o bip que a tua hora chegou. Você quase me deixou morrer lá no banco me abandonando, mas eu vou garantir que você morra realmente. - friamente disparei na cabeça dele assim que ele tentou retirar a armada cintura.


Houve um silêncio ecoando o ambiente. Eles olhavam para mim chocados. 

- Mais alguém tem dúvida se eu sou um traidor? 

- Não temos tempo para mais uma palhaçada! Vamos antes que a polícia chegue. - disse o atirador entrando no carro que não tinha dinheiro e atirou a chave para o meu irmão. O terceiro homem que se manteve calado o tempo inteiro também entrou e os três seguiram o plano acelerando daí para fora.


Eu fiquei no assento do passageiro. E a minha amiga era a motorista. Saímos acelerando daí. Antes de irmos todos, colocamos os cadáveres dentro do carro da ambulância e ateamos fogo. Quanto menos a polícia souber sobre os mortos, melhor para quem sobreviveu. 

Retirei um telefone do porta-luvas e enviei uma mensagem para a senhora do batom com um simples emoji de um lábio de batom vermelho. Em seguida disquei outro número. 

- Alô! 

- Alô, mãe! Sou eu! 

- Meu filho, tudo bem? 

Olhei para minha barriga sangrando, olhei para foto da minha namorada grávida e olhei para uma das pastas de dinheiro no banco de trás e respondi: 

- Sim, está tudo bem, nunca estivemos melhor.

Hadil Almeida

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sexta-feira, 10 de março de 2023

E se fôssemos chuva? - Um livro de Luis da Silva Ubuntu

 


Sinopse


"Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará" - Mateus 24: 12

 É claramente visível que o amor de muitos esfriou. Naquela aldeia, em que todos preferiam chamar de "Pequena cidade" haviam pessoas com um lindo  coração, mas os responsáveis por garantir toda a dignidade ao povo eram o oposto, eram pessoas sem coração.

Quanto tempo temos por aqui? O que temos feito? Como queremos ser lembrados? Sr. Tetembwa tinha a resposta para todas essas perguntas, sabia que nada somos sem os outros. Talvez tivesse aprendido a ser tão humano com os livros que lia ou mesmo pelas lições que aprendeu com a vida. Alguns duvidavam até que era humano, não conseguiam apontar um defeito sequer.

Sr. Tetembwa era um homem que sempre teve prazer em partilhar o que sabia. Defendia que somos peregrinos e a forma de continuarmos vivos começava por partilhar as coisas que sabemos. Nesta jornada da vida, ter leveza no coração, proporcionar amor, sorrisos e sonhos as pessoas é melhor que ter sempre razão.

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sábado, 25 de fevereiro de 2023

Faça o download gratuito do livro “Coração que decidiu falar” da escritora Juliana Kavungo



Finalmente o coração decidiu falar!

Há confissões que tanto queríamos fazer... o que temos vivido e pensado e motivações que precisamos foram escritos e falado pelo coração. Como prometido o relógio marca 12h00.

Convido-vos a todos a irem ao encontro desse coração para ouvi-lo e entendê-lo. Venham embarcar nas falas desse coração, seres incríveis.❤

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Cazola - Um conto de Hadil Almeida

 


A paragem de táxi estava lotada e agitada com o movimento dos passageiros desesperados por táxis; os gatunos de carteiras estavam todos misturados como “um só povo e  uma só nação.” Havia um cobrador discutindo com dois lotadores, um deles gritava: “Mô Velho! Nós enchemu o carro falta nguesso.” E o cobrador relutantemente dizia que não acrescentaria mais. Olhei para o chão por pura espontaneidade e vi uma nota de cinco mil kwanzas, “Cazola.” Pensei logo. Fingi limpar os calçados, apanhei como se nada fosse e enfiei bolso a fundo. Assustei completamente quando alguém segurou meu braço com força. Olhei para o lado e por alguns segundos fiquei com os pensamentos em branco, mas em fracção de segundos reconheci. Era o Quinzinho, filho da Tia Marta do Pincho. Abraçou-me calorosamente e pediu que eu subisse no táxi azul-e-branco que ele estava a conduzir. Parece que ninguém tinha visto a cazola dos cinco mil. Entrei no táxi dele e fomos. “A Manucha `Tá bem? Ainda estão juntos? Eh! Você amava bwe aquela dama, yah.” Comentou ele sorrindo enquanto relembrava as nossas antigas aventuras, nem consegui responder sobre a Manucha porque ele continuou empolgado e falando. Deu-me dois mil kwanzas quando desci, insistiu que eu recebesse e levou o meu número.

Tão logo entrei no escritório, um casal de colegas meus vieram ter comigo desesperados para que eu ajudasse a resolver um problema antes que o boss chegasse. Ajudei imediatamente. A Marta disse: Eu não sei o que seria de mim sem você, yah”. “Vais descobrir.” Pensei. Ela abraçou-me. O Assistente dela prometeu pagar umas fresquinhas no final do dia, eu aceitei.

No final da reunião naquele dia, liderei a minha equipa a conseguir um grande contracto para a empresa. Meu boss estava bastante empolgado, chamou-me num canto e fez-me assinar um documento para que eu recebesse uma comissão dos ganhos. Tão logo acabei de assinar, pensei: “Cazola! Tô bolado.” Ele apertou minha mão firmemente e pediu para que eu não me acomodasse e fizesse mais, que eu estava próximo de me tornar sócio júnior. 

Sentamos em um restaurante com a minha equipa, para festejar aquele dia e distribuí metade do bónús que eu havia ganho, mesmo eles já tendo recebido da empresa. Uns ficaram se questionando, outros ficaram tão emocionados que só continuaram a festejar gritando: “Cazola”, imitando uma das palavras que eu mais repetia nas conversas. 

“Chefe!  Por que és sempre bem motivado? Os chefes doutros departamentos estão sempre de cara trancada, mal-humorados, mas o chefe está sempre a nos fazer rir e nos fazer trabalhar ao mesmo tempo!” Um deles perguntou. E e pelo silêncio percebi que os outros também esperavam uma resposta. 

“Eu quando chego no trabalho deixo na porta o fardo da minha mochila dos problemas. Fico focado no trabalho e no alto desempenho de todos com quem lido. E quando saio do trabalho, não levo o fardo do trabalho para outros lugares. Não carrego pesos desnecessários para criar outros problemas que não consigo lidar.” Ele pareceu estar satisfeito pela resposta independentemente de ser verdade ou não, então parei por aí.  

A Marta chamou-me num canto e perguntou o que eu queria conversar no outro dia quando fomos interrompidos. Eu disse que não era nada. “É sobre a Manucha?” ela perguntou. Neguei mentindo que já tinha resolvido o assunto. Ela deu com os ombros e voltou à mesa. Eu saí de fininho e dirigi-me para minha casa.

 Assim que abri a porta da minha casa, senti o clima pesado, aquele era eu carregando o fardo pesado demais que ambientava aquele lugar. Fechei a porta atrás de mim e me dirigi para o quarto do bebè. Tudo decorado conforme a Manucha queria, aquela mulher é detalhista e chata. Eu sorri pensando na minha alma gemêa, Fui à cozinha e ela não estava lá, nem barulho de panelas, nem a rádio tocando música como ela gostava sempre, e eu chegava sempre gritando de sarcasmo: “Hoje em dia já tem o spotify, weh!” “Eu prefiro mesmo as músicas aleatórias na rádio. Me deixa, pah.” E essas falas frequentes sempre terminavam em beijos, abraços, por vezes um presente para ela e a minha pergunta clássica: “Hoje vamos jantar o quê?”

Mas naquele dia era diferente, mais uma vez. Ainda vestido do terno, despi-me apenas dos sapatos, casaco e da gravata. Entrei no banheiro cheio de água fria. Retirei a carta da minha pasta de trabalho, eu carregava todos dias, e, coloquei aí mesmo num cômodo perto visível sem sair do banheiro. Abri a minha carteira e fiquei reparando nos recortes de fotografias minhas e da Manucha grávida. Lembrei do dia em que ela me disse chorando que estava grávida de mim e na família dela teria problemas, eu respondi: “Olha só para tua cazola! Eu vou estar contigo nesse mambo para o que der e vier.” Ela sorriu parando logo de lacrimejar. E hoje, cá estou eu, sem a mulher da minha vida, nossa filha nem nasceu, e a culpa é daquele maldito acidente, que sei que todo mundo só diz que não é minha culpa para me confortar. Respirei fundo, tomei aqueles comprimidos, e deixei o mau estar me levar debaixo d´água até não puder mais respirar.   

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Maquilhagem - Um conto de Luis da Silva Ubuntu




Todos os dias era a mesma coisa. Sempre que tocasse 21 horas, bem depois do final do telejornal, meu pai desligava o televisor e mandava eu e o meu irmão menor irmos deitar-se. Ele fazia questão de trancar à porta do quarto a chaves para que nenhum de nós saísse até amanhecer. Em seguida, mandava minha mãe para o quarto, e ele a seguia. Sempre que eles fechassem à porta começava o filme, ouviasse muito grito, e, era sempre a minha mãe gritando. Quando eu ouvia a voz do meu pai era sempre para a xingar e a mandar calar a boca. Eu me perguntava por muitos anos o que é que acontecia, porquê minha mãe tinha de gritar de forma desesperada todas as noites, até ao ponto de chorar muitas vezes. 


Todas as manhãs, minha mãe acordava bem maquilhada. Aliás, minha mãe vivia com o seu rosto maquilhado, eu não conseguia lembrar do dia que a vi sem maquilhagem. Todo filho sonha em crescer, construir sua família e ajudar os seus pais, mas o meu maior sonho era ver a minha mãe sem maquilhagem por um dia. Ela vinha abrir à porta do meu quarto e dava um beijinho na testa a mim e ao meu irmão, e mandava nos levantar para nos prepararmos para ir a escola. Meu pai vestia a sua farda militar, colocava a sua arma sobre a mesa sem cuidado nenhum. Todos tomávamos o pequeno-almoço na mais completa normalidade, como se nada estranho acontecesse nas noites da nossa casa. Meu irmão tinha apenas 7 anos, penso que não percebia nada do que acontecia. Mas eu estava farto, já não dava para guardar toda aquela confusão da minha mente só para mim. Fechei os meus olhos, dei um suspiro de coragem e com a voz carregada de desespero gritei:

- Eu cansei de toda essa falsidade! Cansei de comer todas as manhãs como uma família normal enquanto de noite só ouço minha mãe chorar. Cansei de ver a mãe maquilhada o tempo inteiro. Cansei... 

Não terminei de falar, meu pai olhou para mim e logo gritou

- Cala à merda da sua boca e começa a comer. Aliás! Não toque mais nessa comida, vá direito para o seu quarto e prepara-se para uma boa porrada.

- Eu não vou obedecer você! Também estou cansado de ti. Estou cansado das suas porradas. Estou cansado do pai falhado que és. 

Naquele momento meu pai atirou à sua xicara de chá bem na minha direcção, com muita rapidez eu consegui me desviar, e senti o impacto da xicara quando bateu na parede a minha trás. Meu irmão chorava, imóvel. Meu pai pegou no vaso que estava na mesa, e, quando tentou atirar-me minha mãe travou a sua mão, chorando bastante. O vaso caiu sobre a mesa, meu pai com toda violência deu uma bofetada bem na cara da minha mãe. E disse:

- Hoje vou matar todos vocês! 

- Faça o que quiseres comigo, mas deixa os meus filhos em paz. - disse minha chorando enquanto se colocava em frente dele para que ele não chegasse até mim. Meu pai voltou a dar outra bofetada na minha mãe. – Meu pai era um homem totalmente violento. Um

Enquanto minha mãe revirava-se de dor no chão, meu pai caminhava em direção a mim. E com toda calma disse:

- Sabes porque a tua mãe vive com o rosto maquilhado? Porque eu bato nela todos os dias. E faço isso com todo prazer do mundo. – Deu uma gargalhada.Voltou para trás e levantou a minha mãe do chão com dureza. Pegou na toalhinha que estava na mesa, molhou com água e limpou o rosto dela. Falou sorrindo:

- Veja o rosto da sua linda mãe sem maquilhagem! – O rosto da minha mãe estava cheio de hematomas. Um pior que o outro. Estava comprovado, minha mãe era violentada todas noites pelo seu próprio marido e em sua própria casa. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Meu coração batia de tanto ódio por aquele homem. Gritei:

- Eu vou te matar, seu desgraçado. 

Naquele mesmo momento ouvimos um disparo. Com os olhos fixos em mim meu pai foi caindo lentamente, com a sua mão agarrada ao seu peito. Eu e minha mãe nos olhamos, quando viramos o nosso rosto foi o choque, era o meu irmão menor com a arma na mão que havia disparado contra o nosso pai. Ele olhou para nós e disse sorrindo:

- Não chorem mais, agora vamos todos dormir em paz.

[Por: Luis da Silva Ubuntu]

#DoSambilaParaOmundo


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sábado, 11 de fevereiro de 2023

Talvez Deus esteja errado - Um conto de HADIL Almeida


 Conto: Talvez Deus esteja errado 

Sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023


A minha irmã estava completamente frustrada. De repente, ela tinha começado a ficar mais frontal desde o óbito. Falava tudo o que pensava sem medir danos, ainda assim, apenas falava a verdade, não fazia ou falava nada por maldade. 


Havia aquela sensação estranha no ar de que apesar de nós duas termos sofrido, ela precisava de mais apoio que eu, então eu tinha que cuidar dela de qualquer forma mesmo ela sendo a mais velha. 


Ela simplesmente saiu andando pela cidade e pediu a minha companhia. Eu seguia sem saber para onde íamos. Tão logo ela entrou no pátio de uma escola, eu acompanhei-a preocupada. Ela se dirigiu ao auditório e entrou. Lá estavam uns quatro senhores de meia idade e dois jovens.


Desde quando é que ela fuma? - exclamei dentro de mim enquanto via a minha irmã levando um cigarro à boca no meio do auditório.


- Você não pode fumar aqui, menina! 

Eu concordava com o que um dos velhos disse. Mas ela nem sequer ligou e tentava acender o isqueiro que não funcionava. 


- O senhor pode me dar o seu isqueiro? - ela se dirigiu para um dos velhos. 


O senhor não respondeu. Ela indagou em alto e bom som:

- O senhor pode me dar o seu isqueiro, por favor? Não precisa fingir que não tens.


Embora relutante o senhor, ainda assim, retirou o isqueiro do seu bolso e estendeu a mão para ela, que se aproximou e recebeu. 


- É proibido fumar aqui, menina! 

- É a segunda vez que o senhor me chama de menina. Por favor, não volte a repetir, menina é aquela mocinha parada perto da porta. - respondeu apontando para mim. 


"Por que ela está apontando para mim? Por que ela está a fazer isso? Será que eu devo intervir?" Pensei. 


Apenas o senhor que a chamou de menina e o que a emprestou o isqueiro estavam em pé. Havia um silêncio absoluto enquanto ela tragava o seu cigarro transparendo sua inquietação.


- Eu vou chamar o segurança. 

- Não, por favor, não chame o segurança... - ela respondeu num tom meigo... - Chama Deus. - disse as últimas palavras friamente quase gritando, atirando o cigarro ao piso de madeira e apagando com as suas botas pretas.

- Como assim Deus? 


"Eu tenho a mesma pergunta, velhinho! Como assim Deus, mana?" Pensei.


- Vocês estão aqui reunidos em nome de Deus, né? Então onde ele está?

- Menina, desculpa! Senhorita. Deus já está aqui, está inclusive nos lugares em que não podes imaginar.


"Ahmmm! Entendi agora. Esses senhores são religiosos e as siglas por cima das suas bancadas devem representar alguma denominação religiosa." Pensei.


- Por que pareces estar com raiva de Deus? 

- O que eu estou a sentir por ele não tem nem palavras. 

- Isso é bom! Se estás com raiva significa que acreditas na sua existência. 

- Desde criança que fomos educadas a acreditar na sua existência. - ela fez um gesto apontando nós duas  - Mas com as últimas ocorrências, eu começo a questionar o método de Deus de resolver problemas.

- Blasfêmia! - revindicou um dos jovens sentados.

- Silêncio, oh menino! Eu estou a me dirigir para os adultos.


Eu fiquei em choque com aquela resposta dela. Ela tinha acabado de chamar de menino num adulto cheio de barba claramente mais velho que ela, embora mais jovem que os outros, e ele simplesmente sentou. Contive meu sorriso e me mantive atenta.


- Os métodos de Deus para salvar seus filhos é bastante questionável. - ela colocou enfase na palavra filhos. - Ele mata os bons, deixa os maus vivos, fala de justiça, mas todo dia há uma injustiça. Fala sobre ser omniciente*, mas parece não entender nada do que se passa em nossos corações, sempre nos deixando em aflição. E se por um segundo não vivermos sobre as normas impostas por ele, somos ameaçados por um fogo eterno.

- Com todo respeito, há um fraco discernimento do teu lado sobre as leis espirituais. Deus não é esse vilão de filme de Hollywood que você descreveu.

- Então que tipo de vilão ele é? 

- Deus é bom em todo tempo, em todo tempo Deus é bom. 

- Corta esse discurso barato de decorar frases bíblicas pra parecer culto. Ele supostamente criou um mundo, que mal consegue governar.

- Mas não é Deus que governa esse mundo. 

- Piorou. Então por que um ser celestial cria um mundo e diz que é dele, mas não o governa.

- Pela mesma analogia que grandes empresários não dirigem suas próprias empresas e contratam um CEO.

- Ah! Com que então Deus contratou o diabo?

- Tu és meio burrinha ou não sabes o que é uma analogia?

- Acho que ela é meio burrinha mesmo! - retrucou o barbudo que ela tinha mandado ficar em silêncio.


Ela conversava com três dos velhinhos ao mesmo tempo. 


-Vejamos, crio uma empresa, contracto um péssimo CEO que explora os trabalhadores, eu e o CEO ficamos cada vez mais ricos e poderosos. Quando um funcionário reclama, eu ameaço demitir. E para continuar a manter a esperança duma mudança eu digo que haverá bônus de décimo terceiro, e eles vivem esperando este bônus que nunca chega. E ao longo dessa espera, alguns funcionários morrem nos corredores da empresa, enquanto eu e o CEO ficamos cada vez mais ricos. Eu sou meio burrinha, mas essa é a continuação da tua analogia.


"Puxa! A mana não é nada burrinha. Até eu entendi o que é uma analogia." Pensei.


- Primeiramente, essa tua analogia não se alinha com o contexto porque nesse caso os que funcionários trabalham para deixar rico o CEO e o dono. É diferente no mundo espiritual, sim estás certa na parte em que os funcionários deixam poderoso o CEO, diabo. Porém, Deus não precisa ser exaltado para que ele seja Deus. Deus é Deus ainda que você escolha não adorá-lo, isso não diminui o seu poder. Entretanto, nós homens precisamos acreditar em alguma coisa para nos servir de bússola, seja acreditar na existência dele, doutros deuses, ou acreditar que não acreditamos em algum Deus.


"A mana ficou refletindo por alguns segundos. Levou outro cigarro a boca e acendeu."


- Isso só vai te prejudicar. - retrucou o velho que fez a mana refletir.

- Eu apenas comecei a fumar semana passada, quem deve estar bem prejudicado é vosso amigo que me emprestou o isqueiro.

- Sério isso?

- Vamos conversar isso depois, compadre!


"Como a mana sabia que aquele velho fumava?". Pensei.


- Ok. Por favor, senhorita pare de usar essa droga.

- Por quê? O vosso Deus parece que toma as decisões desse mundo drogado.

- Quais decisões? Qual é o verdadeiro motivo para a sua raiva? 


"Tudo." - Pensei.


- Tudo, tudo está mal decidido. - ela gritou. Coincidentemente a mesma resposta que eu. - Fiscais saíram correndo atrás de zungueiras, tal como todo belo dia em Luanda, só que desta vez, duas delas foram mortalmente atropeladas ao atravessarem a estrada correndo. O restante delas se revelou contra os fiscais. A polícia apareceu dando beijinhos, chocolates e puretes as zungueiras. E nessa confusão nossa mãe acabou morta por espancamento. Quanto aos policiais, simplesmente foram suspensos por três meses. Cadê a justiça divina? Porque claramente a dos homens nem sequer é um debate.


Um silêncio absoluto no auditório até ser interrompido pela tosse de um deles quando a mana exalou o fumo do cigarro. Um dos velhos marcou dois passos em direção a mana e disse.


- Vou ter que ser sincero e talvez isso vai ferir a tua sensibilidade. 

- Diga...

- Foi Deus que mandou a sua mãe e as outras zungueiras se rebelarem? 


Não acreditei no que tínhamos acabado de ouvir. A Mana tirou o cigarro da boca transparecendo o semblante sério. O velho prosseguiu dizendo:


- Foram elas próprias que mesmo sabendo que estavam em desvantagem, porém consumidas pela raiva, se colocaram em posições menos favoráveis. E Deus não pode fazer nada contra as decisões que tomamos, este é o conceito de livre arbítrio.

- Falou o funcionário a espera do bônus de décimo terceiro. E quanto as outras senhoras atropeladas? Foi justo aos olhos de Deus?  Minha irmã e eu nunca tivemos um pai, e agora perdemos a mãe. Tenho que cuidar da minha irmã e completei dezanove anos no dia do funeral! O que Deus está a tentar me ensinar? Que merda de lição eu preciso aprender com essa dor enquanto outros jovens estão aprendendo no seio de uma família bem estruturada?

- Deus escreve certo em linhas tortas.

- Ainda tens os pais vivos? 

- Eu? - ele ficou intrigado.

- Sim, o senhor!

- Sim. - respondeu fechando os olhos.

- Talvez seja por isso que você não compreende a nossa dor. Olha em meus olhos e me diz se a vida tem sido justa . Talvez seja pelo facto de que os senhores estão mentalmente programados a acreditar que tudo é um plano de Deus. É nisso em que vocês fundamentam suas crenças, que Deus tem um plano mesmo que os planos dele saíam errados. É doentio.

- Deus tem um propósito...

- Que popósito coisa alguma! Ele já perdeu o controle disso e nós nem sequer percebemos que estamos por nossa conta. Agora é um salve-se quem puder, suporta a dor que conseguir, morram os fracos, e no meio de tudo, alguns finais felizes para os maus.

Ela lacrimejava enquanto falava e fumava. Apontou para mim dizendo para eles.

- Nossa mãe foi enterrada pelo governo, senão ela estaria apodrecendo em algum vala na cidade. Aquela menina aí, é minha irmã. Ela vai ficar de menstruação em alguns dias e nós nem sequer temos um kwanza para comprar penso higiênico nem o que comer hoje porque além de Deus permitir matarem a minha mãe, ainda levaram o negócio.


Um dos velhos que esteve em silêncio o tempo todo se levantou. Levou a sua cadeira até a mana e ajeitou atrás dela para que ela se sentasse e ofereceu-lhe guardanapos, talvez por vê-la em lágrimas. E disse ajoelhando-se perante a mana: 

- Lição número um; Deus sempre vai te dar conforto, tal como eu exemplifiquei.

Lição dois; alguns homens abdicam desse conforto procurando por algo que aumente seus vícios, sacie seus desejos e os encha de prazer.

Lição três; os homens que escolhem o conforto de Deus têm a sua atenção e atraem certas coisas, de igual modo aqueles que escolhem ficar longe desse conforto também atraem outras coisas em sua vida.

Lição quarto; independentemente de escolheres o conforto ou ficares longe dele, Deus não se coloca nas suas escolhas, isso é livre arbítrio. - o senhor ficou em pé novamente. - Lição cinco; nenhum de nós tem as respostas que procuras sobre tudo o que houve na sua família. Mas tu tens o poder de escolher agora, o conforto ou abdicar dele, e cada um tem um preço e retorno. O que você vai preferir? - o velhinho disse as últimas palavras estendendo as mãos para a minha mana.

Ela ficou alguns segundos tremendo enquanto dava a mão muito devagar, soluçava em choros. Até finalmente tocar na mão do velho e ele sorrir para ela.

Saí do auditório chorando enquanto a mana continuava lá dentro de mãos dadas com ele. Olhei para o céu mesmo com os raios de sol batendo em meu rosto e pensei. "Talvez Deus nunca esteve errado, nós apenas nunca conseguimos compreender com tanta dor para suportar." 


Hadil Almeida

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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Quem vê Bunda não vê Coração nem cara - Um conto de Luis da Silva Ubuntu

 


“Quem vê bunda não vê coração nem cara”


Parei o carro em meio ao engarrafamento estressante do largo do 1° de Maio. Observava atentamente os motoqueiros que não poupavam nas mbaias e os tantos moradores de rua que aproximavam-se dos carros pedindo alguma coisa. Ouvi uma batida leve no vidro do carro, já sabia do que se tratava. “Mais um pedinte."- Pensei comigo mesmo. Olhei com desdém, para a minha surpresa, era uma jovem, de cabelo crespo e sorriso esbelto, sorria sem mostrar os dentes, e tinha um encanto no rosto como se tivesse sido desenhado a lápis. Perguntei-me o que ela fazia aí, mas nem deu tempo para pensar na resposta. Baixei levemente o vidro da porta do motorista.


- Jovem, podes me dar mil kwanzas? 

- Mil? - sorri meio incrédulo - Com certeza você é a mendiga mais exigente por aqui, porque o máximo dos outros são cinquenta kwanzas.


Ela nada respondeu. Piscou os olhos e manteve-se quieta a olhar para mim. Senti-me comovido e atraído pelo seu olhar. Tirei uma nota de mil kwanzas e a entreguei.

- Muita obrigada, moço bonito. - agradeceu e sorriu.

Prontamente virou-se e caminhou frente ao carro, possivelmente para bater o vidro de outro carro. Quase que apanhei um susto quando a vi de costas, percebi o porquê o senhor do carro ao lado não parava de olhar para nós enquanto conversávamos. Ela tinha bunda surreal e notava-se que não era por conta de uma jarda! Sem pensar duas vezes, buzinei e ela olhou para trás. Coloquei a mão esquerda para que ela volta-se.

- O que desejas, meu bonito? 

- Podes subir! - falei enquanto destrancava o carro. 

- Por quê? - Ela perguntou.

- Não queres ter um dia diferente? 

O carro atrás de mim buzinou. Nem havia percebido que os carros a minha frente já haviam avançado.

- Não temos muito tempo! Vens ou ficas?

Sem responder ela subiu no carro.

- Claramente não és uma moradora de rua! Falei observando a forma como ela estava vestida e observando o brilho que ela tinha.

- O que sou então?

- Isso é o que quero saber! E também falas bem para piorar nas minhas suspeitas.

- Sou viciada em drogas! Entre me prostituir ou pedir, eu escolhi pedir.

- E quanto você ganha pedindo? 

- O suficiente para não me prostituir. Quase sempre os motoristas são generosos comigo. E já agora, onde estamos a ir? - ela ajeitou o sinto de segurança após suas últimas palavras e arranquei o carro para não continuar a irritar os motoristas atrás de nós.


- Para onde queres ir? 

- Não pergunte sobre coisas que não consegues realizar! - ela falou sorrindo.

- Pelo menos tenta! 

- Quero ir para as Maldivas, sempre foi o meu sonho.

- Também é o meu! - ambos sorrimos.

- Eu nem devia subir no seu carro, talvez sejas um estu-prador! 

- Eu pareço um?

- Nunca se sabe! Por estares num V8 isso não faz de ti um santinho. 

- Parece que entendes de carros e de locais exóticos!

- Depois de mim o que mais gosto são carros. Meu sonho é ser uma colecionadora de carros.

- Então vou levar-te para veres a minha colecção. 

- Sério! Esse já é o melhor encontro de sempre!

- Não é um encontro! 

- O que é então? 

- Nem sei que nome dar, mas isso não importa!

Desci do carro para abrir o portão e acorrentar os cães. Quando entramos, seu semblante transpareceu a admiração com o luxo que daquela pequena residência tinha. 

- Essa é a tua casa?

- Essa é uma das minhas casas! 

- Essa deve ser a casa da malandragem, razão pela qual não tem nem fotografias da tua mulher. 

- Você é a primeira mulher que trago aqui!

- Eu sou virgem!

- O quê? - perguntei para ter certeza do que ouvi. 

- Pensei que estivéssemos a brincar de mentir.

Ambos sorrimos.


- O quarto de Banho é a tua direita! - falei.

- Eu não perguntei! 

- Eu sei! Mas precisas de um banho antes.

- A minha suspeita de que sejas um estu-prador  acaba de aumentar! 

- Já não somos crianças! - falei sorrindo.

- Seu assanhando! - ela falou caminhando em direção ao quarto de banho.


“Isso não podia ser mais fácil.” Pensei comigo mesmo. Corri para o quarto e deixei  arrumado para que pudéssemos subir tão logo ela saísse do banho. Desci e a encontrei sentada no cadeirão da sala, estava despida e cobriu-se tão logo me viu.


- Desculpa, molhei a minha roupa sem querer! - falou prontamente.

- E a toalha? - perguntei sorrindo.

- Tal como disseste, já não somos crianças! ela respondeu sorrindo. 

Tirei a camisa e quis me aproximar dela.

- A casa de banho é a tua direita! - Ela falou sorrindo.

- Mas eu não preciso…

- Precisas também de um banho antes! 

Ela aproximou-se e beijou-me.

- Mas antes, ondem encontro bebida para nós?

- Tens as garrafas de Wisky atrás de ti.

- Agora podes ir tomar o teu banho, moço bonito.

Aquele foi o banho mais rápido da minha vida. Voltei para sala sem roupa e encontrei-a sentada bebendo o Wisky.

- Uau! Parece que não gostas de suspense.

- Já não somos crianças! - falei sorrindo. Ela estendeu o outro copo de Wisky para mim. Acabei em apenas um gole. Aproximei-me dela e a beijei. Comecei sentindo que lentamente estava a perder os sentidos.


Abri os olhos, sem saber quanto tempo fiquei desacordado, olhei a minha volta e percebi que ela não estava do meu lado. Senti uma leve tontura enquanto me levantava. Olhei ao quarto de banho e a suas vestes já não estavam, subi para o quarto e também não havia nenhum sinal dela. Corri para o quintal e para o meu desespero o carro não estava. Só para ter certeza, voltei para sala, olhei para mesa e a chave não estava. Coloquei a mão na cabeça e ajoelhei. "Como vou dizer para o meu chefe que roubaram o seu carro?"


Imagem: Pinterest

03.02.2023

Por: Luis da Silva Ubuntu

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